Como podemos construir relações mais saudáveis, construtivas e amorosas entre homens e mulheres? Rodamos o Brasil e fizemos uma pesquisa com mais de 20.000 pessoas, quali e quanti, para responder essa pergunta

O que está acontecendo mesmo com os homens e com as mulheres?

De um lado, elas: ganham em média 30% a menos do que os homens; são estupradas a cada 11 minutos; possuem apenas 10% de representação política; são subestimadas no ambiente de trabalho, apenas por serem mulheresconsideradas egoístas quando se mostram mais agressivas, como os homens que costumavam ser seus chefes; assediadas também no trabalho (52% delas relatam já ter passado por isso) e nas ruas. Ah, e a idade média na qual sofrem o primeiro desses assédios, no Brasil, é de 9 anos.

Menos de 100 anos atrás as mulheres não votavam e não trabalhavam sem autorização dos maridos, além de já terem tido até mesmo o direito de praticar esportes proibido (aqui uma lista com 25 conquistas das mulheres, de 1822 pra cá).

No outro canto, eles: sujeitos de supostas “emoções simples“. Estão no topo da cadeia alimentar social, comandando a política, as empresas e sendo a força dominante na maior parte dos lugares de fala da sociedade. Mas será que essas três linhas contam a história toda? Penso que não.

Há um bocado escondido debaixo do tapete masculino.

Bastidores de linda conversa que tivemos com o pai Joaquim Pessoa, em sua casa, em Recife.

Eles se suicidam quatro vezes mais do que elas no Brasil; 56.5% têm medo de abrir seus maiores anseios e dúvidas até para os melhores amigos; sofrem com a expectativa social e de boa parte das mulheres para que sejam os principais provedores do lar; são 95% da população no sistema carcerário brasileiro; estão mais expostos ao consumo excessivo de álcool e drogas; se matam todos os dias com facas, revólveres e carros — 91.4% das vítimas de homcídio são homensSofrem de depressão em silêncio e 80% lidam com alexitimia, uma condição expressa pela dificuldade em interpretar e expressar os próprios sentimentos e emoções.

São ensinados a provar que são homens com H maiúsculo. Se engajam em padrões de vida autodestrutivos, perseguindo um ideal de masculinidade que nunca vão alcançar.

Por onde começar então?

Seria uma afronta comparar os sofrimentos, já que as mulheres estão literalmente morrendo dia após dia, nas mãos dos homens. É compreensível e urgente termos estruturas de apoio e empoderamento das mulheres, diante de um contexto tão dramático. Há inúmeras iniciativas que vão se focar apenas nelas, o que é corretíssimo.

As mulheres foram ignoradas por séculos demais e isso precisa mudar.

No entanto, é possível termos empatia e ampliar a nossa visão do problema, entendendo que a dor de um não anula a dor do outro.

A diretora do Instituto Pró-MundoTatiana Moura, nos ofereceu uma excelente ponderação — reproduzo abaixo trecho de conversa realizada com ela por Skype ano passado, durante o processo de pesquisa desse projeto:

“(…) Já existem grandes máquinas de acolhimento e empoderamento das principais vítimas do machismo: as mulheres. E isso é absolutamente incrível e necessário.

Mas sem grandes esforços de reeducação e formação com os homens, não seremos capazes de construir pontes e atacar as estruturas profundas do problema.”

Alguém precisa escutar, acolher e falar com os homens.

Explicar que o problema está em uma masculinidade nociva, não em nascer e ser homem.

Essa conversa não é somente sobre gênero e como tratar as mulheres de modo mais justo e amoroso — o que deveria ser incentivo suficiente, por si só. Passa também por como sermos homens mais seguros de nós e de nossa masculinidade, em todos os campos da vida.

Gabriel Rosemberg, um dos sócios da Questto | Nó Research, entrevista Sirley Vieira, coordenador executivo do Instituto Papai, em Recife

Pois ainda que denunciar e punir sejam ferramentas úteis de transformação social, somente isso não é o suficiente para uma transformação complexa. Essa mudança não pode se basear apenas denunciar e punir, há de se jogar luz em todas as possibilidades de crescimento e liberdade que essa jornada representa.

Esse é o pano de fundo no qual surgiu a campanha global #ElesporElas, da ONU Mulheres, que convida os homens a participarem da conversa em torno da igualdade de gênero. E o escritório brasileiro da ONU lançou a seguinte pergunta ao PapodeHomem, no final de 2014:

“Como podemos envolver mais homens nesse movimento?”

Oferecemos uma ideia e, diante da recepção calorosa, nos propusemos a articular e produzir uma pesquisa nacional, que culminaria em um documentário a ser lançado internacionalmente. Fizemos isso junto de uma equipe de parceiros dos sonhos: ONU MulheresGrupo Boticário, da Questto Nó | ResearchZooma Consumer ExperienceMonstro Filmes, Gustavo Venturi e Heads Propaganda.

Após rodarmos vários estados com um time de pesquisa e filme, captar mais de 80 horas de vídeo e escutar mais de 20.000 homens e mulheres numa das maiores pesquisas sobre gênero já realizadas no país, o resultado é o documentário no começo desse texto.

Entretanto, pra nós não bastava apontar o tamanho do problema. Muitos já fizeram isso antes e sabemos o quão crítica é a situação. Agora é crucial entendermos como a mudança acontece com os homens.

O que eles realmente estão pensando e sentindo? Como enxergam as mulheres e as questões propostas pelo feminismo? Quais gatilhos são os mais eficientes para alcançá-los e encorajar mudanças positivas? Quais abordagens mais os afastam? Quais são suas dores e maiores obstáculos? Quais são as tensões ocultas nas relações entre os gêneros e como superá-las?

A seguir comento alguns de nossos principais achados, que ficarão públicos. Essa é uma lista pessoal e com certeza outras pessoas vão interpretar riquezas distintas em nosso trabalho.

Todo modo, vamos lá.

Os 6 gatilhos e caminhos práticos para transformação dos homens

Nataly Nery, do canal Afro & Afins, com quem tivemos a sorte de trombar na rua, no último dia de gravação.

Um dos produtos dessa construção toda foi um relatório, que em breve será disponibilizado para vocês.

Ele condensa centenas de horas de trabalho da Questto Nó (pesquisa qualitativa), Zooma (pesquisa quantitativa), Gustavo Venturi, (consultoria de gênero), ONU Mulheres, Grupo Boticário e também do PapodeHomem — nos envolvemos, palpitando e aprendendo muito, em todas as etapas do estudo.

Os gatilhos e caminhos práticos estarão na seção final do relatório. Adoraria escutar suas visões sobre esse mapeamento.

A violência entre os gêneros é também relacional

Estamos inseridos numa cultura de violência. E isso significa que há agressões de ambas as partes. O que não deve ser interpretado de modo algum como justificativa para ataques físicos, ou como demérito para os valiosos avanços conquistados pela Lei Maria da Penha e combate à violência de gênero. Esse entendimento nos ajuda a compreender camadas mais complexas do problema, sem jamais anular a responsabilidade de quem agride.

O que escutamos de institutos que trabalham há décadas com situações de violência (NOOSPró-MundoPapai) foi que muitas vezes não se trata de algo caricatural, com um monstro agressor e uma vítima indefesa, mas sim de contextos com mais nuances emocionais e zonas cinzas.

O que é confirmado pela triste estatística de que as mulheres brasileiras demoram, em média, 8 anos até denunciarem pela Lei Maria da Penha que vivem uma situação de abuso — escutei esse dado de uma juíza em um evento sobre gênero na Associação dos Advogados de São Paulo. Ou seja, o abuso se instala de maneira crônica na relação.

Enquanto os homens tendem a ser mais agressivos fisicamente, — ainda que possam cometer violências psicológicas, morais, patrimoniais, sexuais e contra a honra —, as mulheres também podem cometer violências, mas que tendem a ser menos físicas. De novo, isso não é justificativa para homem nenhum bater em sua parceira. Seria uma falsa simetria pensar assim, já que, via de regra, são bem mais fortes do que elas.

O ponto é que parte da raiz do problema pode estar em camadas profundas de nosso mundo emocional. Não à toa uma das iniciativas de maior sucesso para se trabalhar com condenados por agressão são os grupos reflexivos. A lei Maria da Penha determina que os homens julgados por ela passem por esses grupos, mas hoje há escassez de mão de obra para conduzí-los e pouco apoio da sociedade (apenas 11% defendem que grupos de reeducação sejam usados como medida jurídica), que parece interpretar essa iniciativa como acolher quem só deveria ser punido.

Mas os números falam por si, ainda que existam poucas pesquisas sobre essa metodologia: a reincidência de violência dos homens que passam pelos grupos cai de 75% para até 5%.

Em nosso estudo, perguntamos quais violências os homens e mulheres mais cometeram e mais sofreram. E o achado original aqui foi a análise desses dados e nossas conclusões à respeito, que oferecemos no documentário e no relatório.

As principais tensões dos homens brasileiros

O segundo grande achado foi quantificar a intensidade de algumas das principais tensões enfrentadas pelos homens brasileiros. Nos baseando na experiência acumulada em anos de PdH, sugerimos um conjunto bastante específico de perguntas.

O relatório detalha as áreas que mais sufocam os homens e o quanto eles gostariam de mudar, destacando também diferenças regionais de nosso país. Acredito que esses dados podem servir de fagulha para iniciativas super interessantes.

“O machismo existe, claro, mas eu não sou machista”

O terceiro achado foi o contraste entre a quantidade de pessoas que acreditam viver num país machista (81% dos homens, 95% das mulheres) e o baixo número delas que se confessa bastante machista, 3%.

Surpreendeu também escutar que 23% da amostra se considera “nada machista”.

É como o racismo. Todo mundo concorda que existe, mas ninguém se assume. E o medo de se identificar como parte do problema atrasa a resolução do mesmo.

Ian Leite, co-diretor do documentário, filma Isabela, a corajosa aluna da Escola COOPEN (em Rio Preto/SP), que iniciou o movimento que acabou por nos levar a conhecer o excelente trabalho de igualdade de gênero feito pela escola

Para avançar mais rápido, penso ser benéfico criar um contexto no qual os comportamentos problemáticos sejam tratados com a severidade adequada, mas sem que as pessoas em si sejam confundidas com a causa do problema.

A própria ONU acredita que somos todos e todas reprodutores e vítimas do machismo. Ou seja, dado que vivemos numa sociedade cujas próprias estruturas são sexistas, é natural refletirmos esse aspecto. Ninguém está imune a isso.

Essa triste realização pode nos oferecer frescor, por outro lado. Se todos estamos no mesmo barco, ainda que em diferentes medidas, é mais fácil sermos compassivos uns com os outros.

Afinal, compartilhamos um obstáculo em comum. E quem hoje defende o feminismo um dia precisou ser acolhido por alguém, que teve o cuidado de explicar onde estão os desequilíbrios tóxicos entre os gêneros e como podemos aspirar a transformação.

Por isso tendo a ser contra a posturas que humilham pessoas que agem de modo machista, reforçam um clima de guerra e polarização. Claro, aqui falo mais das situações do cotidiano e menos dos casos extremos. Vejo como mais útil a crítica focada nos comportamentos. É possível ser igualmente duro, mas assim oferecemos mais espaço para que o outro se transforme. E no final das contas é isso que buscamos, creio.

Agradecimentos-sem-fim

Boa parte da equipe envolvida, no lançamento em cinema feito em São Paulo dia 25/10

Obrigado Amanda Lemos, Adriana Quadros, Nadine Guzman, Carla Alzamorra, Luana Suzina, Renato Amêndola, time Think Eva (sonharam junto quando a ideia ainda estava sendo rabiscada), Gabriel Rosemberg (que escutou a semente do projeto pela primeira vez há quase cinco anos), Gustavo Rosas, Juliana Fava, Ian Leite, Luiza de Castro, Ciça, Rodrigo Trevisan, Leandro Tonetto, Gustavo Venturi. ONU Mulheres, Grupo Boticário, Questto Nó | Research, Monstro Filmes, Zooma Consumer Experience, Heads Propaganda. Todos nos institutos Papai, NOOS, Pró-Mundo; na Escola COOPEN, e todos os entrevistados e entrevistadas.

A Caco Ciocler e Leandra Leal, que foram a gentileza em pessoa ao cederem suas vozes para dar ainda mais força a essa mensagem.

Ao time todo do PdH, que manteve a casa de pé enquanto colocamos uma energia imensa nessa jornada: Felipe Ramos, Eduardo Amuri, Luciano Andolini, Jader Pires, Ana Higa, Rodrigo Cambiaghi, Luiz Rica, Phelipe Araújo, Breno França, Bruno Pinho, Carol Rocha, Marcela Campos (saudades!), Ismael dos Anjos (tá fora, mas tá dentro), Clint Eastwood Cambiaghi.

Todos que tiveram a boa vontade de acompanhar e criticar o PdH ao longo desses dez anos. Como sabem, nosso editorial nunca foi um projeto estanque, ele vive e pulsa junto com a comunidade. Cansamos de errar, nos desculpar e aprender. E o que vivemos hoje apenas reflete a caminhada da equipe e de quem nos lê e apoia.